PERSPECTIVA – QUEBRANDO O SILÊNCIO
“Minha vida tem sido marcada
por altos e baixos emocionais.
Até os 28 anos, meus relacionamentos foram um fracasso! Minha vida
profissional, embora eu tenha cursado uma
pós-graduação, não decolava. A mediocridade, a tristeza e o ressentimento eram uma
constante. Até que eu dei um basta. Estava cansada de sofrer. Tinha que fazer alguma coisa.”
Quantas pessoas passam pela vida como
Lúcia (nome fictício), carregando uma carga que continua pesando como uma laje de concreto. Meninas e meninos em todo o
mundo, de todas as idades e classes sociais, têm sido vítimas de Abuso Sexual Infantil
(ASI), porque o abuso não respeita gênero, idade, nacionalidade, religião ou nível
socioeconômico.
PREVALÊNCIA
Estima-se que metade da população infantil
ao redor do mundo já tenha sofrido algum
tipo de abuso (Ben Mathews, New International Frontiers in Child Sexual Abuse [Springer, 2018]). Porém, como foi demonstrado ao longo desta edição, os números não descrevem toda a realidade, uma vez que representam os casos que foram notificados.
O ASI é um crime raramente denunciado porque não deixa testemunhas e, às vezes, nem evidências.
Cada pessoa reage de maneira diferente diante da situação. O que sabemos é que não existe abuso sem consequências. As vítimas lutam contra um silêncio perturbador e sofrem incompreensões de familiares
e amigos, e isso afeta a qualidade de vida e
compromete o direito de viver em um ambiente saudável.
Os danos dependerão da idade em que a
situação ocorreu, da frequência, do tipo de
abuso e da relação da vítima com o agressor.
Mas as implicações são amplas, podendo
afetar a dimensão física, emocional, social,
sexual, espiritual, cognitiva e laboral.
Em termos psicológicos, as vítimas são
mais propensas a ser diagnosticadas com depressão e ansiedade e apresentar taxas mais altas de
transtornos psiquiátricos, alimentares e do sono
(link.cpb.com.br/933066). Além disso,
apresentam níveis de bem-estar
abaixo da média, dependência
de álcool e de outras substâncias prejudiciais, alto risco de
promiscuidade, tendência ao
sexo prematuro com múltiplos
parceiros e desejo sexual hipoativo ou hiperativo (acesse:
link.cpb.com.br/fe03f0 / link.
cpb.com.br/dddd1f / link.cpb.com.br/5941aa).
A essa lista, pode-se acrescentar também déficit de atenção, baixo desempenho acadêmico, dificuldade de se concentrar e tomar decisões, desconfiança e insegurança.
NEUROPLASTICIDADE
O trauma da violência impacta
o desenvolvimento das vias neurais que estão em fase de formação durante a infância e a
adolescência. As reações parassimpáticas (calma e tranquilidade) são opostas ao estado de
alarme e perigo que é regulado
pelo sistema nervoso simpático.
Quando ocorre abuso sexual
infantil, essas duas vias neuronais se “cruzam”, e a reação de
sobrevivência é ativada com mais
frequência, fazendo com que a
pessoa tenha dificuldades de
se sentir segura. Esse frequente estado de alerta é uma das
principais razões pelas quais
as pessoas desenvolvem modos
de enfrentamento pouco saudáveis, associados às dificuldades
que mencionamos anteriormente.
Felizmente, hoje se sabe muito
sobre neuroplasticidade. As vias
neurais podem ser alteradas.
Um dos fatores que auxiliam
nesse processo é o apoio de um
profissional de saúde mental e
a conexão segura com outra(s)
pessoa(s). Isso ajuda a regular a
reação de sobrevivência que foi
alterada pelo ASI. Ao ser capaz
de criar momentos de segurança ou tranquilidade, você pode
iniciar o processo de mudança
dessas conexões neurais para
uma resposta mais saudável.
Existem terapias cognitivas
e somáticas que auxiliam na
autorregulação das funções parassimpáticas e no retorno da
calma e tranquilidade. Ao mesmo tempo, fazer parte de uma
comunidade religiosa que promova um ambiente de “graça”
em vez de condenação ajuda essa
pessoa a se sentir segura e não
culpada. Encontrar maneiras de
ativar o sistema nervoso parassimpático é fundamental para
reabilitar as vias nervosas afetadas pelo ASI e voltar a aproveitar a vida ao máximo. Isso não é
fácil nem rápido, mas é possível.
O PAPEL DA ESPIRITUALIDADE
Por isso é fundamental saber
que Deus oferece cura. Jesus
afirmou: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (João 10:10). No início
de Seu ministério, Ele disse que
havia sido enviado “para pôr
em liberdade os oprimidos”
(Lucas 4:18). E podemos entender por que em Seu ministério Ele curava, consolava e
fazia as pessoas felizes. A mulher samaritana, que em sua
busca incessante por felicidade
e aceitação se envolveu em casamentos tóxicos, sofrendo um
divórcio após o outro, ao encontrar Jesus, pela primeira vez, não se sentiu julgada nem rejeitada,
mas valorizada e respeitada. No
calor do meio-dia, ousou pedir
aquela “água da vida” e a recebeu! Sua vida foi transformada.
Mefibosete, deficiente físico
que sofria de baixa autoestima,
sentiu-se rejeitado por todos e
ficou incrédulo ao receber a notícia do rei Davi: “Você sentará sempre à minha mesa para
comer” (2 Samuel 9:7). Assim,
Deus restaurou sua autoestima e sua dignidade.
Vale a pena mencionarmos também Raabe, uma mulher
pobre que vivia da prostituição. Sentindo-se indigna, impura
e sem esperança, seu ato de crer no Deus dos hebreus restituiu-lhe
a dignidade e a alegria de viver, a ponto de ela ser uma das poucas
mulheres mencionadas na genealogia de Jesus (Mateus 1:5). Que
honra! Deus não apenas cura feridas: Ele restaura e dignifica as
pessoas.
No Antigo Testamento encontramos múltiplas referências ao
papel curador de Deus em favor
dos que sofrem. “Quem cura todas as suas enfermidades” (Salmo
103:3). “Porque restaurarei a sua saúde e curarei as suas feridas”
(Jeremias 30:17). “Eis que lhe trarei saúde e cura e os sararei;
e lhes revelarei abundância de paz e segurança” (Jeremias 33:6).
“Ele sara os que têm o coração quebrantado e trata das feridas
deles” (Salmo 147:3). Ele é um Deus “rico em misericórdia, por
causa do grande amor com que nos amou” (Efésios 2:4).
Além disso, “o Senhor, o Deus de vocês, é bondoso
e compassivo” (2 Crônicas 30:9).
A todas as pessoas, especialmente àquelas
que sofreram algum tipo de injustiça, Deus
diz: “Não tenha medo, […] meu amado, a
quem escolhi” (Isaías 44:2). Isso deve ser
o suficiente para ir a Ele com o sentimento
de culpa que você carrega; ou com sua insegurança e sofrimento. Nele você encontrará aceitação e alegria de viver. Sua vida será completamente transformada, e as vias
neurais serão reabilitadas.
Acima de tudo, lembre-se de que o próprio Deus sofre com a dor de Seus filhos,
assim como sofreu quando Jesus morreu na cruz. Por isso, muito em breve a dor e o
sofrimento que o pecado trouxe acabarão.
Viveremos em um mundo onde não haverá mais lágrimas (Apocalipse 21:4).
Querido Deus, restaura em nós a dignidade de vivermos como Teus filhos. Transforma o nosso ser. Te oramos em nome ed Jesus
ANTÔNIO ESTRADA é mestre em Psicologia da Família e doutor em Estudos da Família e do Casamento; NISIM ESTRADA é psicólogo especializado em trauma